terça-feira, 13 de maio de 2008

Luz


Ficava agora internado por tempo indeterminado, para curar uma infecção e uma grave anemia. A minha situação actual era preocupante, os meus valores sanguíneos estavam demasiado baixos, tinha perdido cerca de quinze quilos e uma infecção com origem no golpe que tinha no joelho, resultado da biopsia que havia feito.
Nos primeiros dias, o meu corpo estava alimentado a soro e medicado por um antibiótico. O meu organismo estava demasiado frágil, com poucas defesas imunológicas, e por isso, sujeito a ser contaminado mais facilmente por infecções. Para ajudar a recuperar os meus valores sanguíneos e as defesas imunológicas do meu organismo, fui sujeito a transfusões de sangue.
O meu corpo estava a reagir bem aos tratamentos a que estava a ser sujeito, melhorava a cada dia que passava. Começava a alimentar-me de uma forma mais normal, conseguia fazer uma refeição decente. A comida servida era agradável e à noite o meu jantar era caseiro. A minha mãe mimava-me todos os dias com um dos seus deliciosos cozinhados.
Durante este período de internamento, ganhei uma cumplicidade e amizade interessante com o pessoal de enfermagem. Eram uma equipa de enfermeiros bastante nova e com uma humanidade e disponibilidade incrível. À noite passava algum tempo a conversar com ele, um simples pormenor que me ajudava a passar o tempo e a animar-me um pouco.
Pela enfermaria onde estava, iam entrando e saindo pacientes para efectuarem os respectivos ciclos de quimioterapia. Criei uma empatia agradável com alguns deles. Partilhámos alguns dos nossos problemas, das diferentes reacções aos tratamentos, das nossas mágoas, das nossas alegrias. Tentávamos ajudar-nos uns aos outros a ultrapassar aquele tempo de sofrimento da melhor forma possível. Conheci um rapaz da minha idade que estava a fazer tratamento a um tumor nos testículos. Já tinha sido sujeito à cirurgia para retirar um testículo e agora estava a proceder à quimioterapia de forma a eliminar e evitar a propagação de células cancerígenas. Estava a reagir bem aos tratamentos, mas sentia-se algo incomodado com a perda de cabelo.

Fazia três semanas que havia sido internado, estava a reagir muito bem, o meu corpo recuperara grande parte da energia que havia perdido. O meu aspecto estava agora mais agradável, o meu rosto apresentava-se com uma cor mais natural, mais viva, o meu peso tinha aumentado, recuperando alguns quilos.
Havia apenas um pormenor que não tinha evoluído para melhor. Quando me faziam o curativo, reparava que o aspecto daquela ferida no meu joelho era cada vez mais desagradável. O golpe continuava sem querer cicatrizar. Segundo os médicos, este pormenor indicava que as células cancerígenas podiam não estar a reagir ao tratamento. Ficava ansioso quando chegava a hora do curativo, pois queria ver se havia alguma evolução naquela ferida. Por vezes, parecia que estava com melhor aspecto, mas não passava de pura ilusão.
No final da terceira semana de internamento, estava marcado uma consulta de grupo logo pela manhã. Fui levado em cadeira de rodas por uma auxiliar para o local onde se efectuavam essas consultas. Depois de aguardar um pouco na sala de espera, chegava a minha vez de estar presente em frente à equipa médica que acompanhava todo o meu processo.
Entrei naquela sala e fiquei perante um conjunto de rostos do qual apenas alguns me estão presentes na memória. Um dos médicos presentes proferiu as seguintes palavras: “Helder, infelizmente, o tumor presente no seu joelho direito não reagiu ao tratamento de quimioterapia. Perante este facto, a única solução para que possa ficar curado passa pela amputação do seu membro inferior direito acima do joelho.”
Apesar de ter consciência, desde o dia em que entrei no IPO, onde naquela mesma sala me foi dito que aquela era uma das possibilidades a ter em conta para a minha cura, aquelas palavras foram como que uma bomba que atordoou todo o meu ser. Foi um tremendo abalo, apenas consegui proferir algumas palavras para perguntar se não haveria outra hipótese a considerar. Depois disso, um silêncio profundo emergia do meu interior e as lágrimas de dor começaram a deslizar pelo meu rosto.
Fui levado novamente para a sala de espera, aguardando que a auxiliar me viesse buscar para regressar ao piso onde estava internado. Parecia que o mundo inteiro acabara de desabar sobre o meu corpo, estava a viver um enorme pesadelo. A auxiliar veio buscar-me e, ao reparar no meu estado, também não conseguiu dirigir-me qualquer palavra.
Parecia que mais nada existia à minha volta, aquelas palavras continuavam a martelar o meu pensamento, estava em profundo estado de choque. Chegava à minha enfermaria, na hora de almoço, ainda a chorar silenciosamente. Os meus colegas de quarto aperceberam-se logo do meu estado de terror e respeitaram o meu silêncio. Tinha o tabuleiro do almoço ao lado da minha cama. Por incrível que possa parecer, sentei-me na borda da minha cama, coloquei o tabuleiro diante de mim e comecei a comer. As lágrimas caíam pelo meu rosto e misturavam-se com a comida. Tinha um nó bastante apertado na garganta, a comida mal conseguia passar.
Sentia-me completamente revoltado, não era justo um jovem de 17 anos receber uma notícia daquelas. Quando terminei de almoçar, como tinha recebido alta hospitalar, decidi vestir-me a arrumar as minhas coisas, esperando que os meus pais chegassem para regressar a casa.
A minha cama estava situada próximo da porta da enfermaria, por isso reparei na chegada dos meus pais quando eles ainda caminhavam pelo corredor. Quando chegaram perto de mim e me viram naquele estado perguntaram o que se tinha passado. De uma forma um pouco brusca, respondi que os médicos me tinham dito que ia ficar sem a minha perna. A minha mãe lançou-se a mim a chorar efusivamente, entrando em profundo estado de choque. O meu pai permanecia um pouco mais afastado, num profundo silêncio de sofrimento. As enfermeiras trouxeram um calmante para a minha mãe. Continuávamos ambos abraçados a chorar. Fazia um esforço para confortar a minha mãe, apesar de todo o meu sofrimento.
Passado algum tempo, estávamos um pouco mais calmos, a minha mãe parecia estar a recuperar daquele tremendo choque. Já no corredor, ouvi as palavras de um médico que talvez despertaram uma luz inexplicável dentro de mim. Após algumas considerações sobre o que se ia passar, ele confrontou-me e disse-me: “Helder, se queres viver, é este o caminho que tens de percorrer…”

Na tarde daquele dia, respirava novamente o ar puro e sentia a luz do Sol a incidir directamente sobre o meu ser, depois de três semanas de internamento. Regressava a casa com os meus pais e, por milagre de Deus, toda aquela revolta que havia sentido uns momentos atrás tinha sido banida do meu interior. No meu rosto despertava um sorriso ingénuo, doce e proferia palavras de conforto e esperança no diálogo que mantinha com os meus pais.
Talvez tenha assimilado que o mais importante era viver, mesmo que para isso tivesse que enfrentar um árduo e doloroso caminho…

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