segunda-feira, 26 de maio de 2008

Nothing Else Matters



Eternamente confiando naquilo que realmente somos, nas nossas capacidades... Em cada amanhecer, para nós algo de novo... Uma mente aberta para uma concepção diferente... De mãos entrelaçadas, sorrisos e olhares cúmplices... E nada mais importa...

Epílogo


Passados cerca de 8 anos, não me sinto um herói por ter vencido uma doença como o cancro. Sinto que venci uma batalha importante da minha vida, com muito sofrimento e dor, mas acima de tudo com muita esperança. Esperança num amanhã que podemos construir com as nossas mãos, através das opções que tomamos na nossa vida.
Mais importante do que sobreviver, eu decidi que queria viver, acordar todos os dias com um sorriso no rosto, deixar-me inundar pela luz do sol e caminhar na estrada da vida. A força interior que desabrochou em mim, permitiu que encarasse a vida com outro olhar, aceitando o meu corpo tal como ele é, conseguindo vencer as barreiras que uma deficiência pode causar, ultrapassando os meus próprios limites.
Para mim o essencial é correr atrás do sonho, viver a beleza de cada momento, de cada dia, lutando pelos nossos objectivos pessoais. Quando sentimos algo em nós mais forte, capaz de vencer cada obstáculo que surge no nosso caminho, é difícil perder a alegria de viver, por muito complicada que seja a caminhada que temos de enfrentar.
Aceitar as nossas diferenças e ter consciência das dificuldades que enfrentamos que temos de lidar no dia a dia são os alicerces para construirmos a nossa felicidade. Precisamos de descobrir a nossa verdadeira identidade, no âmago do nosso ser, a total liberdade que existe em nós que nos faz voar e sentir a beleza da vida.


Cada um de nós pode ir mais além, tendo noção das suas capacidades, acreditando no seu verdadeiro potencial, evitando perder tempo em lamentar as contrariedades que surgem na nossa caminhada.
Com este simples testemunho, quero partilhar um pedaço de mim, algo que muito contribuiu para a pessoa que sou hoje. Aprendi e tenho sempre presente que a vida é um dom, um dom que não podemos desperdiçar.
Este dom da vida deve ser também colocado ao serviço dos outros, não o fechando na concha do nosso egoísmo. A nossa vida, as capacidades que possuímos devem ser partilhadas com as pessoas que nos rodeiam, fomentando a comunhão com o próximo.
Ajudar os outros, contribuir para que no rosto das pessoas mais necessitadas e excluídas da nossa sociedade floresça um sorriso, é algo que me preenche e faz sorrir. É com pequenos gestos que conseguimos tornar o mundo num lugar mais agradável.
A vida tem um sentido, podemos demorar muito tempo a descobrir esse mesmo sentido, o caminho da felicidade, mas não podemos desistir, não podemos baixar os braços perante as barreiras e obstáculos que vão surgindo. Na maioria das vezes, tentamos encontrar a felicidade no exterior, naquilo que nos rodeia, e acabamos na superficialidade, obtendo apenas pequenos momentos de êxtase, mas fugindo da nossa verdadeira identidade, acabando por cair num vazio profundo. A verdadeira felicidade reside em cada um de nós, na medida de se sentir em harmonia consigo próprio, descobrindo o seu verdadeiro ‘Eu’ no seu interior, podendo dessa forma partilhá-lo com os outros, resistindo às tempestades e adversidades que aparecem no nosso caminhar.
Sinto que ainda estou apenas no início dessa caminhada, dessa aventura que é viver, tendo consciência que cada amanhecer é um novo desafio, uma nova etapa, um novo dia para Amar.

terça-feira, 20 de maio de 2008

Prótese II


Durante os primeiros dias, apenas colocava a prótese durante cerca de uma hora, para ir adaptando o coto àquela forte pressão e esforço constante. Aproveitava as sessões de fisioterapia para calçar a prótese e efectuar os exercícios de equilíbrio e adaptação aconselhados pelo fisioterapeuta que me acompanhava. Era sobretudo essencial que nestes primeiros dias fosse ganhando alguma consistência, apoiando o peso do meu corpo sobre a nova perna, para que desenvolvesse os músculos e a força necessária para conseguir caminhar normalmente.
A adaptação começava a ser uma realidade sorridente, os exercícios de marcha com o apoio das barras laterais começavam a surtir efeito. Além das sessões de fisioterapia, também comecei a colocar a prótese em casa e a caminhar durante algum tempo com o apoio das canadianas. Ao fim de poucos dias, já me sentia mais à vontade com a prótese e apenas utilizava uma canadiana para me apoiar durante os meus passos.
Tanto o fisioterapeuta como o técnico aconselhavam-me a ir calmamente, a ser paciente, para que durante este processo de adaptação não adquirisse certos hábitos que prejudicassem a naturalidade da minha marcha num futuro próximo.
Passado cerca de um mês já conseguia caminhar mais naturalmente, sem a ajuda das canadianas. Tentava aperfeiçoar diariamente a minha marcha e sentia uma grande alegria e entusiasmo por estar a conseguir vencer mais uma batalha que ao início parecia bastante complicada.

Com o decorrer do tempo, fui adaptando-me cada vez melhor à minha nova realidade, habituando-me com naturalidade a todos os mecanismos envolventes ao uso da prótese. Calçar a prótese começava a ser tão natural como calçar um par de sapatos. Conseguia andar quase todo o dia com a prótese, aguentando o esforço e um ritmo diário algo intenso sem sentir dores ou acusar cansaço.
Era uma sensação plena de liberdade poder caminhar novamente sobre as minhas pernas, poder passear com liberdade. Apenas sentia um pouco de dificuldade quando andava sobre pisos irregulares ou passeios com subidas ou descidas acentuadas, o que era normal segundo o que o técnico me havia dito.
É claro que existem algumas limitações físicas, algumas barreiras que o uso da prótese não consegue vencer, mas é uma realidade que não impede em nada de viver intensamente o meu dia a dia, ou que me faça sentir inferior e infeliz. Além de conseguir adaptar-me à nova realidade física da prótese e todos os cuidados necessários ao seu uso, o mais importante é vencer as barreiras mais difíceis, os preconceitos e barreiras interiores. Ter consciência das nossas limitações e acreditar que esse facto não é impedimento para seguir em frente e lutar pela felicidade como outro ser humano qualquer é o factor mais importante para que consiga ultrapassar todos os obstáculos que vão surgindo diariamente.

segunda-feira, 19 de maio de 2008

In My Place



Muitas vezes sentimo-nos impotentes perante certas barreiras que precisamos de vencer... Então o desânimo, a desilusão, o medo, apoderam-se do nosso ser... É necessário parar, meditar, reflectir, descobrir forças, energias, lutar para conseguir contornar, vencer essas barreiras...

Prótese I


Após cerca de sete meses da cirurgia, do dia em que ficara sem a perna direita, é que estava finalmente pronto para avançar para a prótese. Na consulta de medicina física, a médica, depois de me examinar e verificar a evolução do meu coto, disse-me que chegara o momento de prescrever a prótese. Era um momento muito importante para mim, pois aproximava-se o próximo passo da minha completa recuperação.
Passado cerca de um mês, recebia uma chamada de uma casa ortopédica com a finalidade de marcar o dia e a hora para fazer os moldes e tirar medidas. Crescia em mim uma certa ansiedade por estar prestes a descobrir algo que desconhecia e iria ser fundamental para os dias da minha vida.
Na semana seguinte, seguia em direcção ao Porto, a caminho do local onde ficava a casa ortopédica onde estava marcado para o início da manhã a sessão de testes para efectuar os moldes necessários à construção da prótese. Foi um pouco complicado conseguir descobrir o local, mas após alguma confusão no trânsito e umas paragens para perguntar indicações a transeuntes.
Finalmente chegava ao local pretendido, dirigindo-me à recepção para efectuar os requisitos necessários para a abertura do meu processo. Depois das burocracias realizadas, fui recebido por um técnico ainda relativamente jovem e muito bem disposto. Cumprimentou-me e apresentou-se colocando-me desde logo bastante à vontade, criando desde logo uma empatia agradável entre nós.
A manhã foi muito preenchida a tirar um número infindável de medidas e a efectuar moldes. Era tudo um pouco estranho para mim, observava todos aqueles processos e técnicas com bastante curiosidade e tentava ser o mais prestável possível ao que me pediam para fazer. Explicaram-me que a construção da prótese era um processo que requeria muita dedicação e técnica e que alguns materiais eram importados, pelo que iria demorar cerca de três semanas para que me chamassem com o objectivo de ver o resultado e experimentar.
No final daquela manhã intensa, estava de regresso a casa, sentindo um misto de entusiasmo e ansiedade pelo facto de estar cada vez mais próximo e real a concretização de um grande passo para a minha qualidade de vida no futuro.

O prazo de construção foi cumprido rigorosamente e, após o intervalo das três semanas, contactaram-me para me informar que a prótese estava pronta para eu a testar e experimentar pela primeira vez. Combinamos a data para a realização desse grande momento.
Aquele dia, em que finalmente iria ver a minha nova perna direita e que poderia experimentar e sentir o que era novamente caminhar, havia chegado. Desta vez entrava directamente para o ginásio da casa ortopédica, acompanhado pelo técnico que estava ao meu dispor, para me ensinar o essencial.
Entrava no ginásio e deparava-me com a prótese encostada a um canto ao fundo do ginásio, à espera que a experimentasse, fizesse uso dela. O técnico explicou-me detalhadamente como deveria calçar a prótese. Parecia-me algo complicado todo aquele processo e, quando experimentei, foi relativamente difícil.
Pela primeira vez, ao cabo de oito meses, estava novamente apoiado em dois membros inferiores, mas a sensação não era nada agradável. Sentia uma pressão enorme no coto, como se estivesse a ser sufocado pelo copo da prótese. Era como se um pássaro completamente livre, fosse enclausurado num cubículo onde não pudesse bater as asas…
Passados alguns instantes daquela sensação inicial, com a ajuda das barras laterais do ginásio consegui dar os primeiros passos, parecendo um robot. O técnico estava bastante atento e dava-me indicações no sentido de eu olhar para o espelho em frente e observar a minha marcha. Também me questionava acerca da afinação do joelho e da orientação do pé, procedendo aos retoques técnicos necessários.
Algum tempo depois, descalçava a prótese, sentindo um profundo alívio no meu coto e com uma voz bastante desagradável no meu interior que me questionava se alguma dia seria capaz de andar normalmente com aquilo.
O técnico explicou-me também que a construção da prótese não estava ainda completamente terminada. Faltava o revestimento da prótese, que apenas seria feito depois de um tempo experimental, para dar tempo a que me adaptasse melhor e a proceder a algumas afinações necessárias. Trazia a prótese comigo para ir utilizando diariamente, de forma gradual, principalmente durante as sessões de fisioterapia.

sexta-feira, 16 de maio de 2008

Demande au Soleil



Peço ao Sol, à Lua e às Estrelas que levem até Ti a força, a beleza, a intensidade, o sopro deste Amor que me inunda, que transborda no meu peito...

Escola


Deixar a escola foi bastante complicado para mim. Frequentava o 12º ano, estava no início do 2º período quando fui internado no Hospital de Guimarães. A escola era o meu habitat natural, raramente faltava às aulas. Gostava imenso do convívio com os meus colegas, de aprender cada vez mais, prestando muita atenção ao que os professores ensinavam.
Como fui assim internado de surpresa, não tive oportunidade para avisar os professores e os meus colegas. Durante aquele período em que estive em Guimarães, apenas tive visita de colegas meus em duas ocasiões. Sentia falta daquele convívio diário, do contacto com os meus parceiros da escola.
Nos momentos difíceis e quando mais precisamos dos amigos e, naquela altura, apercebi-me de que ainda não possuía grandes e verdadeiras amizades. Talvez esteja a ser injusto comigo mesmo e com os meus colegas daquela época, mas foi uma realidade que vivi naqueles momentos de sofrimento.

Num dia em que fui à escola conversar com o director de turma, no intervalo do primeiro tratamento de quimioterapia, cruzei-me com alguns colegas meus nas escadas da biblioteca e apercebi-me da expressão de receio que pairava nos rostos deles, quando se depararam com o meu estado bastante fragilizado. Não era o mesmo Hélder que eles estavam habituados e ver.
Nessa reunião com o director, foi decidido que teria de suspender o ano lectivo em curso, pois não seria possível completar os dois períodos necessários para concluir com sucesso o secundário. A escola era uma parte de mim que ficava para trás nesse momento.

Em Setembro, iniciava-se um novo ano lectivo e eu decidira enfrentar o desafio de regressar novamente às aulas logo no primeiro dia. Ainda me sentia algo frágil, pois havia terminado recentemente os ciclos de quimioterapia. Pode parecer um pouco aventureiro ou heróico, mas para mim a vontade de voltar à escola era imensa, o que me levou a encarar tudo com bastante naturalidade, sem preconceitos relativamente à minha nova imagem, perante a exposição de uma escola inteira.
Recordo-me desse dia em que entrava naquela escola como se fosse uma criança a caminho do seu primeiro dia de aulas. Possuía um grande entusiasmo por voltar a sentir o contacto com aquele lugar bem familiar. Estava em frente à porta da sala onde iria ter a primeira aula, rodeado pelos meus novos colegas de turma, quase todos eles desconhecidos para mim.
A professora chegava à sala de aula e ao passar por mim saudou-me, pois já tinha sido minha professora há cerca de dois anos. Nas aulas sentia um à vontade que não era comum nos anos lectivos anteriores. O meu sentido de humor estava bem mais apurado, pondo um pouco de parte a timidez que fazia parte da minha personalidade.
Alguns dos meus professores eram meus conhecidos, o que ajudou a manter um relacionamento bastante agradável naquela turma, visto que não me identificava com a personalidade de uma boa parte dos meus colegas, pois considerava que se preocupavam muito em estudar, existindo uma certa obsessão e rivalidade por causa das notas.
Apesar de ter estado quase um ano afastado dos livros e das aulas, foi fácil para mim esta readaptação à escola encarava aquilo tudo com um certo à vontade, talvez até um pouco em demasia. Não sentia qualquer espécie de discriminação ou preconceito. A administração da escola deu-me todo o apoio necessário para que me pudesse sentir o mais à vontade possível, embora não fosse preciso nada de especial. Uma das alterações que efectuaram, foi a distribuição de quase todas as aulas da minha turma nas salas do rés-do-chão, para evitar que eu tivesse que despender demasiado esforço físico a subir e descer escadas.
Apesar de andar imenso sobre as canadianas, os meus braços sentiam-se com força suficiente para transportar o meu corpo, percorrendo alguns quilómetros diários pela escola. Sentia-me muito bem, começava a relacionar-me melhor e a simpatizar com os meus colegas e, apesar de pouco estudar, os resultados e as notas apareciam com alguma naturalidade.
Talvez um dos meus maiores receios fosse a minha reacção às aulas de Educação Física. Adorava desporto e sempre participei com enorme dedicação nessas aulas, mas agora a realidade era bem diferente. Por incrível que possa parecer, assistia às aulas de Educação Física, vendo os meus colegas empenhados e divertidos nas diversas actividades desportivas sem sentir qualquer espécie de mágoa ou desilusão por não poder participar activamente naquelas actividades. Um pormenor que já não era tão agradável era o facto de ter de elaborar os relatórios de cada aula, mas era um elemento necessário para a minha avaliação.

Na primeira semana de férias da Páscoa, estava marcada uma visita de estudo para Lisboa. Desde que soube da existência desta viagem, que quis participar, sabendo que era organizada por um professor amigo, que fazia questão que eu fosse. Estava ainda a adaptar-me à prótese, mas foi uma semana bem intensa, em que me diverti imenso, e em que pude testar a resistência das minhas capacidades físicas. Para quem estava ainda a dar os primeiros passos com uma prótese, caminhei vários quilómetros, aproveitando e desfrutando ao máximo de cada lugar que visitamos em Lisboa.
O ano lectivo decorreu com bastante naturalidade, concluindo o 12º ano com relativa facilidade, preparando-me para enfrentar um novo desafio, o de ingressar na Universidade.

quinta-feira, 15 de maio de 2008

We Carry On



Em determinados momentos da nossa vida temos que reaprender a viver, recomeçar da casa de partida, como se renascessemos novamente das cinzas... Precisamos de continuar a sorrir, a viver e não apenas a sobreviver...

Cirurgia II


Na manhã do segundo dia após a cirurgia, uma das médicas que assistiu à operação entrava pelo meu quarto. Depois de me saudar, deu-me um valente puxão de orelhas, dizendo-me com um ar bastante sério que eu podia ter morrido no bloco operatório, devido a não ter cumprido correctamente o período de jejum.
Recordava-me vagamente de ter bebido um pouco de água durante a noite, ainda que inconscientemente, pois tinha acordado durante o sono com bastante sede. Esse acto irreflectido havia provocado aquela convulsão de que me lembrava ter tido durante a cirurgia.
Seguidamente, com a ajuda das enfermeiras, a médica prosseguiu com o curativo. Reparava, pela primeira vez, como havia ficado o que restava da minha perna direita, quando foram removidas as ligaduras. Era uma enorme sutura que abrangia toda a extremidade do coto. Parecia que estava tudo em ordem e, depois da lavagem com soro fisiológico, colocaram novamente umas ligaduras em volta do coto. Tinham que ficar bem ajustadas, o que me provocou dores fortes, intensas e profundas, levando-me a gemer durante alguns instantes.
Após o curativo fiquei um pouco mal disposto, devido ao sofrimento que havia passado há momentos…

Passava os meus dias deitado na cama, com a companhia da minha querida mãe, a que se juntava o meu pai na hora das visitas. As enfermeiras mostravam-se muito simpáticas e prestáveis. De manhã, ajudavam-me com a minha higiene pessoal, cuidando muito bem de mim.
Apesar de estar sempre naquela posição e de o meu corpo manifestar algumas reacções um pouco desconfortáveis e incómodas, mantinha uma boa disposição diária, despertando com um belo sorriso para a vida logo que os raios de sol inundavam o meu quarto pela aurora matinal.
No primeiro Domingo em que estava internado, recebi inúmeras visitas de familiares chegados. Foi agradável sentir o calor humano de pessoas que me eram muito queridas. Todos ficavam surpreendidos com a minha disposição bastante alegre, o meu riso espontâneo e o sorriso doce que contagiava aquele quarto.

Uma semana após a cirurgia, logo pela manhã, entrava um enfermeiro cheio de energia pelo meu quarto, cumprimentando-me e dizendo em tom de provocação: “Menino Helder acabou-se a preguiça, toca a sair da cama…” O meu primeiro pensamento, após ouvir aquelas palavras, foi que só podia estar a brincar comigo, mas passados alguns minutos, entrava novamente no meu quarto com uma cadeira de rodas.
Era uma sensação muito estranha levantar-me daquela cama ao fim daquele tempo todo. Com a ajuda do enfermeiro conseguia sentar-me confortavelmente na cadeira de rodas e encetar um passeio pelos corredores daquele piso. Sentia uma sensação de liberdade incrível.
Lentamente começava a recuperar alguma independência que havia perdido, nas actividades mais banais do ser humano. Deslocar-me sozinho à casa de banho para cuidar da minha higiene pessoal e satisfazer as necessidades mais básicas, eram alguns dos exemplos que estava a reaprender a fazer sozinho.
O meu corpo não conseguia manter o equilíbrio natural quando me colocava em pé, pois agora faltava-me um membro de apoio. Em pouco tempo, passei da cadeira de rodas para as canadianas. Sentia uma maior auto-suficiência, podendo deslocar-me e movimentar-me com uma maior à vontade e liberdade.
Encarava os dias com maior naturalidade, tentando adaptar-me à nova realidade do meu corpo. A minha recuperação estava a decorrer muito bem, sentia-me forte física e psicologicamente. Durante os curativos, podia observar que, aparentemente, a sutura estava a cicatrizar normalmente. Apenas as reacções da minha pele aos adesivos me continuavam a incomodar bastante. Foi marcada uma consulta de dermatologia para que esta reacção cutânea, esta alergia ardente pudesse ser tratada. O dermatologista que me observou prescreveu-me uma pomada para aplicar duas vezes por dia. Comecei logo nesse mesmo dia com o tratamento, aplicando a pomada sobre a minha pele, sentindo um alívio reconfortante.

Cerca de quinze dias após o internamento, a equipa médica que acompanhava o meu processo decidia dar-me alta clínica, dizendo-me que tinha de regressar várias vezes para consultas onde iriam observar a evolução do meu caso. Estava pronto para regressar a casa com os meus pais, uma nova realidade estava à minha espera…

quarta-feira, 14 de maio de 2008

Freedom of Choice



Várias vezes somos tentados a escolher o caminho mais fácil, a estrada menos árida...
Que a nossa liberdade de escolha nos conduza àquilo que realmente seja a nossa identidade pessoal...

Cirurgia I


Chegara o dia do internamento para a cirurgia. Na véspera da cirurgia, tinha uma consulta marcada, para ultimar todas as precauções e indicações a ter em conta. Após a consulta e todos os procedimentos naturais, fui conduzido ao piso 7, onde ficava o quarto que me iria acolher durante os próximos tempos. Tratava-se de um excelente quarto, com umas condições fantásticas. Instalei-me comodamente, despindo a roupa que trazia, vestindo um pijama bem confortável.
Após o almoço, fui autorizado a deslocar-me ao piso da quimioterapia. Rever algumas daquelas pessoas que eram bastante especiais, por todo o carinho e atenção que me tinham prestado era importante para mim naquele momento. Encontrei também o Nelson, um amigo que fizera no último internamento. Estava a efectuar mais um ciclo de quimioterapia, parecia bem disposto. Reparou que o meu cabelo recomeçara a nascer novamente, ficando um pouco radiante com esse pormenor, visto que ele sentia falta do cabelo que perdera. Disse-lhe que brevemente ele recuperaria o seu forte cabelo.
Regressei ao meu quarto, onde apenas comi uma sopa ao jantar, pois tinha que estar em jejum até depois da cirurgia. No final do jantar, despedi-me dos meus pais. O meu serão foi agradável, assistindo um pouco aos programas de televisão que passavam, antes de fazer a minha oração pessoal, conversando ternamente com Deus, e repousar a cabeça na almofada para adormecer.
Desfrutei de uma excelente noite, dormi profundamente, despertando muito bem disposto com os raios de sol que invadiam o meu quarto pela janela. Depois de um breve preguiçar, fui cuidar da minha higiene pessoal.
As enfermeiras chegaram pouco depois, retribuindo a minha excelente disposição com sorrisos bem abertos. Deram-me a medicação prescrita pelos médicos e começaram os preparativos para a cirurgia. Desinfectaram e depilaram a minha perna direita, aliviando a única espécie de ansiedade que residia no meu interior. Por muito disparatado que possa parecer, tinha um certo receio que os médicos se enganassem na perna…
Chegara a hora da cirurgia, estava prontíssimo e era conduzindo na minha cama para o bloco operatório pelo pessoal auxiliar. Foi uma viagem não muito longa e ao fim de uns breves minutos chegava ao local onde, finalmente, iriam retirar-me uma parte de mim que estava doente e enferma.
Estava um número considerável de pessoas no bloco operatório. Sentia-me seguro nas mãos daqueles médicos, enfermeiros e assistentes e sentindo a força protectora do Amor de Deus. Quando a anestesista me perguntou se apenas queria a epidural, podendo assistir a tudo o que se passava durante a cirurgia ou se queria entrar num sono profundo, eu optei pela segunda alternativa. Passados uns breves instantes, adormecia profundamente.

Algumas horas depois acordava na sala de recobro, sentindo frio e ainda completamente entorpecido, devido ao efeito dormente da anestesia. Espreitei por baixo do lençol que me cobria e verifiquei que grande parte da minha perna direita já não estava no meu corpo. Permaneci ali, naquela sala fria, por mais alguns longos minutos.
Vieram buscar-me, levando-me de regresso ao meu quarto, onde os meus pais já me aguardavam. Aparentavam um aspecto um pouco pesado, mas sorriram levemente quando me viram chegar. Não me recordo das palavras que trocamos, pois ainda me sentia muito atordoado, mas sentia aquele afecto e amor que a presença dos meus pais me transmitia naquele momento.
Não apreciava nada aquela sensação pós-anestesia, afectava bastante o meu humor e não permitia que conseguisse manter os olhos abertos durante algum tempo seguido. À parte este efeito da anestesia, sentia-me bem, não tinha dores de espécie alguma.
A noite chegava lentamente, apagando-se a luz do sol que entrava pela janela do meu quarto. O horário da visita chegava ao fim, despedia-me do meu pai que tinha de regressar a casa. O jantar foi servido no quarto, tive a companhia da minha mãe que ia passar a noite comigo. O jantar foi agradável, apesar da posição pouco confortável em que me encontrava.
A minha noite foi um verdadeiro inferno, pois o meu corpo começava a fazer reacção ao adesivo que tinha nas costas, ao longo da espinha dorsal, devido à epidural. Sentia uma urticária intensa, consumindo o meu corpo, parecia que a minha pele estava em chamas. Passei a noite em claro, não dando descanso à minha mãe e às enfermeiras, que faziam de tudo para tentar aliviar o meu sofrimento.
Aquela reacção prolongou-se pelos dias seguintes, era difícil conseguir aliviar aquela sensação ardente, pois o adesivo precisava de continuar colado à minha pele.

terça-feira, 13 de maio de 2008

Luz


Ficava agora internado por tempo indeterminado, para curar uma infecção e uma grave anemia. A minha situação actual era preocupante, os meus valores sanguíneos estavam demasiado baixos, tinha perdido cerca de quinze quilos e uma infecção com origem no golpe que tinha no joelho, resultado da biopsia que havia feito.
Nos primeiros dias, o meu corpo estava alimentado a soro e medicado por um antibiótico. O meu organismo estava demasiado frágil, com poucas defesas imunológicas, e por isso, sujeito a ser contaminado mais facilmente por infecções. Para ajudar a recuperar os meus valores sanguíneos e as defesas imunológicas do meu organismo, fui sujeito a transfusões de sangue.
O meu corpo estava a reagir bem aos tratamentos a que estava a ser sujeito, melhorava a cada dia que passava. Começava a alimentar-me de uma forma mais normal, conseguia fazer uma refeição decente. A comida servida era agradável e à noite o meu jantar era caseiro. A minha mãe mimava-me todos os dias com um dos seus deliciosos cozinhados.
Durante este período de internamento, ganhei uma cumplicidade e amizade interessante com o pessoal de enfermagem. Eram uma equipa de enfermeiros bastante nova e com uma humanidade e disponibilidade incrível. À noite passava algum tempo a conversar com ele, um simples pormenor que me ajudava a passar o tempo e a animar-me um pouco.
Pela enfermaria onde estava, iam entrando e saindo pacientes para efectuarem os respectivos ciclos de quimioterapia. Criei uma empatia agradável com alguns deles. Partilhámos alguns dos nossos problemas, das diferentes reacções aos tratamentos, das nossas mágoas, das nossas alegrias. Tentávamos ajudar-nos uns aos outros a ultrapassar aquele tempo de sofrimento da melhor forma possível. Conheci um rapaz da minha idade que estava a fazer tratamento a um tumor nos testículos. Já tinha sido sujeito à cirurgia para retirar um testículo e agora estava a proceder à quimioterapia de forma a eliminar e evitar a propagação de células cancerígenas. Estava a reagir bem aos tratamentos, mas sentia-se algo incomodado com a perda de cabelo.

Fazia três semanas que havia sido internado, estava a reagir muito bem, o meu corpo recuperara grande parte da energia que havia perdido. O meu aspecto estava agora mais agradável, o meu rosto apresentava-se com uma cor mais natural, mais viva, o meu peso tinha aumentado, recuperando alguns quilos.
Havia apenas um pormenor que não tinha evoluído para melhor. Quando me faziam o curativo, reparava que o aspecto daquela ferida no meu joelho era cada vez mais desagradável. O golpe continuava sem querer cicatrizar. Segundo os médicos, este pormenor indicava que as células cancerígenas podiam não estar a reagir ao tratamento. Ficava ansioso quando chegava a hora do curativo, pois queria ver se havia alguma evolução naquela ferida. Por vezes, parecia que estava com melhor aspecto, mas não passava de pura ilusão.
No final da terceira semana de internamento, estava marcado uma consulta de grupo logo pela manhã. Fui levado em cadeira de rodas por uma auxiliar para o local onde se efectuavam essas consultas. Depois de aguardar um pouco na sala de espera, chegava a minha vez de estar presente em frente à equipa médica que acompanhava todo o meu processo.
Entrei naquela sala e fiquei perante um conjunto de rostos do qual apenas alguns me estão presentes na memória. Um dos médicos presentes proferiu as seguintes palavras: “Helder, infelizmente, o tumor presente no seu joelho direito não reagiu ao tratamento de quimioterapia. Perante este facto, a única solução para que possa ficar curado passa pela amputação do seu membro inferior direito acima do joelho.”
Apesar de ter consciência, desde o dia em que entrei no IPO, onde naquela mesma sala me foi dito que aquela era uma das possibilidades a ter em conta para a minha cura, aquelas palavras foram como que uma bomba que atordoou todo o meu ser. Foi um tremendo abalo, apenas consegui proferir algumas palavras para perguntar se não haveria outra hipótese a considerar. Depois disso, um silêncio profundo emergia do meu interior e as lágrimas de dor começaram a deslizar pelo meu rosto.
Fui levado novamente para a sala de espera, aguardando que a auxiliar me viesse buscar para regressar ao piso onde estava internado. Parecia que o mundo inteiro acabara de desabar sobre o meu corpo, estava a viver um enorme pesadelo. A auxiliar veio buscar-me e, ao reparar no meu estado, também não conseguiu dirigir-me qualquer palavra.
Parecia que mais nada existia à minha volta, aquelas palavras continuavam a martelar o meu pensamento, estava em profundo estado de choque. Chegava à minha enfermaria, na hora de almoço, ainda a chorar silenciosamente. Os meus colegas de quarto aperceberam-se logo do meu estado de terror e respeitaram o meu silêncio. Tinha o tabuleiro do almoço ao lado da minha cama. Por incrível que possa parecer, sentei-me na borda da minha cama, coloquei o tabuleiro diante de mim e comecei a comer. As lágrimas caíam pelo meu rosto e misturavam-se com a comida. Tinha um nó bastante apertado na garganta, a comida mal conseguia passar.
Sentia-me completamente revoltado, não era justo um jovem de 17 anos receber uma notícia daquelas. Quando terminei de almoçar, como tinha recebido alta hospitalar, decidi vestir-me a arrumar as minhas coisas, esperando que os meus pais chegassem para regressar a casa.
A minha cama estava situada próximo da porta da enfermaria, por isso reparei na chegada dos meus pais quando eles ainda caminhavam pelo corredor. Quando chegaram perto de mim e me viram naquele estado perguntaram o que se tinha passado. De uma forma um pouco brusca, respondi que os médicos me tinham dito que ia ficar sem a minha perna. A minha mãe lançou-se a mim a chorar efusivamente, entrando em profundo estado de choque. O meu pai permanecia um pouco mais afastado, num profundo silêncio de sofrimento. As enfermeiras trouxeram um calmante para a minha mãe. Continuávamos ambos abraçados a chorar. Fazia um esforço para confortar a minha mãe, apesar de todo o meu sofrimento.
Passado algum tempo, estávamos um pouco mais calmos, a minha mãe parecia estar a recuperar daquele tremendo choque. Já no corredor, ouvi as palavras de um médico que talvez despertaram uma luz inexplicável dentro de mim. Após algumas considerações sobre o que se ia passar, ele confrontou-me e disse-me: “Helder, se queres viver, é este o caminho que tens de percorrer…”

Na tarde daquele dia, respirava novamente o ar puro e sentia a luz do Sol a incidir directamente sobre o meu ser, depois de três semanas de internamento. Regressava a casa com os meus pais e, por milagre de Deus, toda aquela revolta que havia sentido uns momentos atrás tinha sido banida do meu interior. No meu rosto despertava um sorriso ingénuo, doce e proferia palavras de conforto e esperança no diálogo que mantinha com os meus pais.
Talvez tenha assimilado que o mais importante era viver, mesmo que para isso tivesse que enfrentar um árduo e doloroso caminho…

segunda-feira, 12 de maio de 2008

Vanishing



Existem momentos em que caminhamos nas trevas, à beira do abismo... Nasce uma vontade de fechar os olhos, apagar e desaparecer...

Calvário IV


Terminado o tempo de repouso em casa, regressava ao IPO para um novo internamento, para mais uma dose daquele líquido avermelhado. Cheguei bem cedo, mas logo que lá entrei já sentia enjoos, mesmo sem sentir o cheiro da comida. Constatei que tinha adquirido um trauma psicológico como reacção ao que tinha passado no primeiro tratamento.
Tinha uma pequena cirurgia marcada para essa manhã. Ia ser colocado no meu peito um êmbolo para fazer a infusão da quimioterapia através de uma veia mais forte, visto que as veias das mãos não aguentam a agressão provocada. Fui conduzido ao bloco operatório, onde me atordoaram com a anestesia e realizaram a cirurgia. Quando acordei estava na sala de recobro, sentia uma sensação muita estranha, um entorpecimento total do corpo, provocado pelo efeito anestésico. Após o tempo de recuperação naquela sala, regressei ao piso 3 para recomeçar a quimioterapia.
Esta nova semana de tratamento foi uma batalha bastante árdua, em que a fraqueza e o desânimo se apoderaram do meu ser. Estava mais isolado, pois a enfermaria era apenas de dois pacientes. Ao meu lado estava um senhor com um tumor nos intestinos. Viria a ter conhecimento do seu falecimento uns dias mais tarde.
Os dias passavam muito lentamente, os efeitos da quimioterapia estavam cada vez mais visíveis em todo o meu ser. Os enjoos continuavam com bastante frequência, fazia febre, sentia calafrios por todo o meu corpo. Era tratado com muita atenção e carinho, mas era apenas uma gota num profundo oceano de sofrimento.
Chegara ao fim a segunda fase de quimioterapia, voltava a casa demasiado frágil para conseguir reunir forças suficientes para um novo tratamento. Tinha a noção que precisava de me alimentar, que era necessário arranjar forças para enfrentar as próximas etapas, mas como o iria conseguir era uma pergunta para a qual não possuía alguma resposta.
Poucos dias consegui resistir em casa, pois a seguir à Páscoa, aconteceu o que seria mais previsível. Cheguei ao limite das minhas capacidades, bati no fundo. Num dia, comecei a sangrar pelo nariz o que acontecia com relativa frequência, mas desta vez não estava a conseguir estancar o escorrimento nasal. Desloquei-me ao Centro de Saúde, onde, talvez devido ao meu estado de saúde, me senti mal atendido pela enfermeira e pela médica de serviço. Saí porta fora sem discutir e dirigi-me a uma clínica de uma enfermeira conhecida, onde fui recebido com carinho e tratado com dignidade. A enfermeira conseguiu fazer parar o escorrimento do sangue e regressei a casa sentindo-me ainda mais fraco. O cansaço era tanto que perdia a visão quando me confrontava directamente com o sol.
Nesse mesmo dia à noite, quando estava deitado para dormir, sentia o meu corpo demasiado quente. Através da medição do termómetro, constatei que estava com febre bastante alta.
Liguei para o IPO a comunicar a minha situação e disseram-me que o melhor seria dirigir-me imediatamente para lá. Vesti-me e fui de emergência para o Porto. Cada minuto perdido poderia significar um agravamento maior do meu estado de saúde.
O meu corpo não aguentou face ao tratamento da quimioterapia. Precisava de saber qual a gravidade do meu estado actual e quais seriam as próximas etapas a que teria de me submeter…

sexta-feira, 9 de maio de 2008

Return of Innocence



A aridez do deserto que várias vezes atravessamos, que sentimos, leva-nos a desvanecer, a vacilar...
A máscara, a ilusão perante o sofrimento não é uma solução... Não devemos ter medo de chorar, de revelar a nossa fraqueza...

Calvário III


Regressava a casa com os meus pais, num estado degradante, o meu rosto parecia a imagem pálida de um fantasma, mas com a firme convicção de que nas próximas três semanas teria de enfrentar uma batalha para recuperar forças e ânimo para o próximo ciclo de quimioterapia.
Sentir-me novamente em casa era sinónimo de uma serenidade de que o meu ser estava mesmo a precisar. Durante os primeiros dias, os enjoos continuavam a aparecer com frequência, sentar-me à mesa para fazer uma refeição era um momento doloroso, pois sentia-me incapaz de comer. Fazia um grande esforço para me alimentar, pois tinha bem presente a noção de que era fundamental alimentar-me. Para recuperar os meus níveis sanguíneos, tentava também ingerir um xarope à base de Aloé Vera.
Na primeira semana em casa, surgiu outro dos efeitos colaterais da quimioterapia, para o qual eu já estava alertado. Um dia, ao acordar, deparei-me com a quantidade de cabelo que tinha deixado durante a noite na minha almofada. Percebi então que as minhas raízes capilares haviam sido muito enfraquecidas e iria perder todo o meu vasto cabelo. Era uma sensação estranha passar a mão pelo cabelo e ficar com grandes madeixas soltas na mão. Decidi então que o melhor seria ir à minha cabeleireira e passar o cabelo a pente um, para evitar que o meu cabelo ficasse solto por todo o lado. Ganhava agora um novo look, algo que era novo para mim, pois nunca tinha aderido a algum tipo de cortes radicais no meu cabelo.
O facto de perder o meu cabelo não me preocupava, seria inútil gastar as poucas forças que me restavam a irritar-me com esse pormenor. Sentia o olhar das pessoas quando me cruzava com alguém na rua, mas era algo que não me magoava, pois apesar de me sentir observado com um olhar invasor, tinha a noção de que era sobretudo olhado por curiosidade e por ignorância. Não podia julgar os outros por desconhecerem esta realidade diferente e pouco comum numa terra pequena.
Passava a maior parte do tempo em casa, pois além do cansaço também era frequente sentir frio quando saía à rua. Deslocava-me apenas ao Centro de Saúde, para que me fizessem o curativo ao joelho. Durante os curativos constatava que o golpe continuava sem querer cicatrizar, sinal de que as minhas células continuavam doentes.
Com o passar dos dias, os enjoos foram desaparecendo gradualmente e já recomeçava a sentir aquele apetite normal para me sentar à mesa e desfrutar de uma refeição normal. Este aspecto trazia-me algum ânimo e fazia com que começasse a recuperar algumas forças. Por outro lado, tinha a noção de que estava próximo o próximo ciclo de quimioterapia, o que me deixava algo consternado.

quinta-feira, 8 de maio de 2008

Schism



Mesmo que as peças se quebrem, podemos voltar a encaixá-las...
A poesia, a beleza reside no âmago de cada um de nós...

Calvário II


Numa manhã fria de Fevereiro, dava entrada no IPO, para iniciar a primeira etapa de quimioterapia. Após efectuar os procedimentos normais de um internamento hospitalar, desloquei-me a uma sala, onde uma enfermeira me retirou sangue para proceder às análises necessárias.
Seguidamente, fui conduzido ao local onde iria passar os próximos dias. Quando entrei naquela enfermaria, deparei-me com um ambiente francamente desolador, via corpos enfraquecidos e rostos desanimados.
Dirigi-me para a cama que estava destinada a acolher o meu corpo, instalando-me ao lado da janela, podendo receber a luz emanada pelo sol. Era o sexto paciente daquela sala, o único que estava a iniciar todo aquele processo.
Depois de comodamente instalado, as enfermeiras vieram ligar aquele soro avermelhado directamente às veias da minha mão. Sentia uma sensação fria quando aquele soro penetrava o meu ser. O meu organismo era invadido por algo estranho e desconhecido, programado por uma máquina verde que comandava a velocidade e dose da infusão.
Ao meu lado estavam dois jovens como eu que já tinham passado por algumas etapas do tratamento. Estranhei bastante os seus pedidos para o almoço, quando a auxiliar veio trazer a ementa. Ficavam-se apenas por iogurtes e fruta, rejeitando os pratos à escolha.

Os dois primeiros dias decorriam com normalidade, sem grandes sobressaltos. Passava a maior parte do tempo deitado na minha cama, ouvindo música, observando o que se passava na enfermaria e recebendo a visita diária dos meus pais. Apenas era desligado da máquina, de manhã, para cuidar da minha higiene pessoal.
Pontualmente, as minhas veias começaram a ceder e tinha de ser picado novamente a fim de encontrar uma nova veia para poder receber aquela droga. As minhas mãos começavam a ficar doridas e enfraquecidas perante a violenta agressão do soro que as percorria.
Ao terceiro dia, surgiu um dos primeiros efeitos colaterais da quimioterapia. Quando chegou a hora do jantar, e tendo o tabuleiro com a comida à minha frente, senti-me indisposto. O cheiro da comida estava a provocar-me uma forte indisposição, chegando mesmo a ter enjoos. Percebi neste momento o porquê do sentido dos iogurtes e da fruta pedidos pelos meus colegas para as refeições.
Os dias que se seguiram foram muito complicados, quando se aproximava a hora das refeições era uma sensação terrível. Jamais havia sentido esta sensação de mal-estar provocada pela comida. Sentia o arrastar do tempo, as horas eram demasiado longas para que o meu corpo pudesse resistir. Os enjoos tornavam-se cada vez mais frequentes e intensos, o meu organismo rejeitava os alimentos. Eram quase sempre inúteis todos os esforços que operava para comer. Optava por alimentos mais frescos, sem cheiros fortes, mas mesmo assim era complicado conseguir alimentar-me.
As minhas forças diminuíam à medida que o tempo avançava, os meus membros sentiam dificuldade em responder aos movimentos necessários para me mover com as canadianas. O meu desejo, o meu único pensamento era que a dose programada terminasse o mais cedo possível, para aliviar um pouco aquele martírio. A cada dia que passava ficava mais impaciente, perguntava com frequência às enfermeiras quanto tempo ainda faltava e ficava sempre desiludido com a resposta obtida. Chegava a pedir-lhes para aumentarem a velocidade de infusão programada, para que pudesse regressar o quanto antes ao meu querido lar.
Aquele veneno continuava a percorrer as minhas veias e estava a destruir-me à medida que me ia consumindo. As minhas veias eram demasiado frágeis para resistir a tamanha agressão. As enfermeiras já dificilmente conseguiam encontrar uma veia nas minhas mãos para picar. As minhas mãos estavam bastante feridas, com vários hematomas.
Ao sétimo dia de internamento, chegava finalmente o fim do primeiro ciclo de quimioterapia. As últimas horas foram pesadas, o meu corpo estava de rastos, sentia reacções estranhas e fora do meu controlo no meu organismo. Quando reparei nas últimas gotas daquele líquido a correr pelo tubo em direcção às minhas veias senti um grande alívio.

quarta-feira, 7 de maio de 2008

Gravity



A travessia do deserto é um longo e penoso caminho, mas leva-nos aos confins do nosso Ser... Leva-nos a descobrir o que é realmente importante, a desejar saborear cada segundo desse maravilhoso dom que é a Vida...

Calvário I


Numa manhã de uma sexta-feira, saía de casa em direcção ao IPO no Porto, um lugar onde jamais havia estado. A viagem demorou cerca de uma hora, com um trânsito caótico à chegada. Aquela manhã fora bastante preenchida, quase numa correria, percorrendo alguns sectores daquele hospital.
A última e mais importante paragem daquela manhã, foi na sala reservada às consultas de grupo. Enquanto aguardava pela minha vez, via sair de lá de dentro pessoas a chorar, em verdadeiros prantos. Chamaram pelo meu nome, entrava naquela sala e ficava perante uma equipa de médicos que me explicaram detalhadamente qual a doença que padecia e quais os tratamentos a que teria de me submeter. Tudo num discurso bastante frontal, utilizando uma linguagem bem acessível e perceptível ao mais comum dos mortais.
Explicaram-me que tinha um tumor maligno no joelho direito, provocado por uma incorrecta regeneração celular e que teria de efectuar alguns ciclos de quimioterapia para tentar queimar essas células cancerígenas. Também me elucidaram para a hipótese bem real de poder perder o membro inferior direito, caso os tratamentos de quimioterapia não tivessem sucesso.

Estava de regresso a casa, depois de uma manhã intensa, em que finalmente parecia existir uma luz ao fundo do túnel. O primeiro tratamento começava já a seguir ao fim-de-semana. Parecia estar tudo a decorrer tudo muito rapidamente, depois de uma longa travessia por um deserto árido.
Num curto espaço de tempo consegui ficar esclarecido acerca da minha situação, aquilo a que me teria de submeter e o que me poderia suceder. É incrível a diferença de atitude e tratamento em relação ao lugar onde estivera internado cerca de um mês.


A quimioterapia foi o processo mais cruel que tive de enfrentar. O meu corpo conseguiu apenas resistir a dois ciclos do tratamento que estava planeado. Um tratamento bastante agressivo cujo objectivo era eliminar as células cancerosas do meu organismo, mas acarreta os chamados efeitos colaterais que limitam e degradam as funções do nosso organismo. É necessário reunir forças no nosso interior, para conseguir percorrer um longo deserto, atravessar um longo calvário.
Cada ciclo de quimioterapia correspondia a uma semana de internamento terrível, apesar de toda a bondade e generosidade das pessoas que estavam presentes e me ajudavam diariamente.

terça-feira, 6 de maio de 2008

Roads



Momentos... Caminhos...

Montariol



Era uma manhã amena de Sábado, aquela em que com o Pároco da minha freguesia e o meu pai me deslocava para Braga. Acabara de sair do Hospital de Guimarães e ia encontrar-me com uma pessoa amiga do Padre, alguém que eu desconhecia.
Chegávamos a um imponente edifício localizado na encosta de um monte, retirado da confusão da cidade. Era um belo lugar onde se respirava ar puro e se sentia a harmonia da Natureza. No Colégio de Montariol, fomos recebidos por um frade que nos conduziu à pessoa que procurávamos. Feitas as devidas apresentações e saudações, fiquei perante um homem que vestia uma gasta bata branca no lugar do hábito Franciscano.
Passeávamos os quatro pelo pátio do colégio, enquanto o Frei dialogava um pouco com o Padre. Pude observar que as traseiras daquele edifício davam acesso directo para o monte onde moravam árvores de grande porte e uma espécie de cactos florescia alegremente.
Regressamos ao interior do colégio onde o Frei me convidou a subir com ele a um piso superior. O elevador conduziu-nos ao andar desejado e segui os passos daquele homem iluminado. Entramos num pequeno quarto onde nos sentamos comodamente sobre a cama, observando-nos mutuamente.
Começou a conversar comigo, perguntando-me se estava assustado, ao que respondi negativamente, pois desconhecia o diagnóstico exacto do meu estado de saúde. Com aquela voz profunda, penetrante, colocou-me uma questão curiosa que me deixou um pouco admirado. Ao ouvir as suas palavras interrogar-me acerca da minha vaidade com o cabelo, respondi afirmativamente, que era um pouco vaidoso com o meu aspecto.
Prontamente e num tom bastante afável, disse-me para me mentalizar que iria perder todo o meu cabelo, mas que depois voltaria a nascer e crescer ainda mais forte. A minha completa ingenuidade levou a que reagisse com aparente serenidade perante aquela constatação.
Continuamos a conversar durante mais algum tempo e descemos ao rés-do-chão, onde, após colher algumas folhas daqueles cactos, preparou um xarope caseiro para eu levar para casa. O aspecto daquela mistela não era lá muito agradável, mas se era para me ajudar esse pormenor não era importante. Explicou-me cuidadosamente como haveria de tomar o xarope durante o intervalo dos tratamentos a que eu me iria submeter e que eu desconhecia por completo.
Despedimo-nos do Frei, agradecendo toda a generosidade e hospitalidade demonstrada, prometendo voltar brevemente. Regressava a casa, com aquele momento bem marcado no meu pensamento, no meu ser…

sexta-feira, 2 de maio de 2008

Imagine



Deixemo-nos levar nas asas da imaginação... Enquanto acreditarmos podemos sonhar com um despertar na ternura de um sorriso...

Prólogo


Há algum tempo que havia despertado em mim o desejo de escrever sobre uma etapa muito importante da minha vida. Este desejo permaneceu como que adormecido em mim, até que há uns meses atrás surgiu alguém muito especial na minha vida que me encorajou e apoiou delicadamente a tentar escrever e partilhar esta fase da minha vida.

Aos 16 anos, era um adolescente comum a muitos outros, cuja vida se passava essencialmente entre a casa e a escola. Era daqueles alunos aplicados e empenhados em obter bons resultados escolares, que gostava da conviver e ajudar os colegas da escola, aproveitando ao máximo todo o tempo que passava na escola.
Era um rapaz tímido e algo reservado principalmente na abordagem com as raparigas, apesar de ser bastante sociável com as minhas colegas, ainda não tinha despertado em mim aquela curiosidade natural para os namoros da adolescência, preferindo o convívio com os meus amigos, ocupando uma grande parte do meu tempo livre com o desporto, sobretudo praticando futebol.

A minha simples e humilde existência conheceu um rumo diferente aos 17 anos. O dia do meu aniversário fica marcado pela tarde passada no corredor das urgências do hospital. Após várias horas de espera, fui observado pela equipa médica de serviço, realizei uns exames médicos e foi-me dito para voltar na segunda-feira a fim de realizar mais exames ao joelho direito.
Havia já algum tempo que o meu joelho direito não respondia da melhor forma quando sujeito ao exercício físico. Há umas semanas atrás, no mesmo hospital, já me havia sido diagnosticado uma simples tendinite, mas as dores continuavam após o tratamento indicado.
Na segunda-feira, no lugar de me deslocar para a escola, dirigi-me sozinho para o hospital. Na recepção foi-me indicado o 10º Piso – Ortopedia. Depois de uns minutos à espera, dizem-me que, afinal, vou ser internado. Nem queria acreditar…
Na manhã do dia 11 de Janeiro de 1999, era internado no piso 10 do Hospital de Guimarães. Estive naquele local cerca de um mês, onde, após vários exames e uma biopsia, não tiveram a ousadia de me conseguirem explicar qual a doença de que padecia. Perante tamanha falta de profissionalismo, assinei o termo de responsabilidade e abandonei aquele lugar. Entrara pelo meu próprio pé, mas apenas consegui sair com o auxílio das canadianas.